As signatárias, como entidade ou movimentos de caráter científico ou de representação de categoria ligada ao mundo do trabalho, vivenciam a perplexidade decorrente de tempos nunca considerados possíveis. Nosso Brasil foi historicamente forjado pela violência de um apartheid social, fator fundante de nossa sociedade desde a falácia de seu descobrimento pelos europeus. Nos dias atuais, seus setores rinocéfalos perderam constrangimentos e travas, adquiriram a soberba dos ogros, naturalizaram a sua bestialidade, inclusive nas redes sociais. Talvez por formarem parcela importante da base de apoio do atual governo, julgam-se no direito de romper qualquer patamar civilizatório e exercerem um suposto direito natural de supremacia.
E praticar todas as formas de violência, inclusive contra as mulheres em seu trabalho.
O episódio a seguir relatado é grave, inclusive por apresentar sinais e sintomas de uma sociopatologia terminal:
- Duas Auditoras do Trabalho lotadas em São Luís, capital do Maranhão, recebem ordens de serviço inseridas no projeto local de combate à informalidade infracional, fator que tanto contribui para o processo de precarização do trabalho, em um espaço gastronômico frequentado da cidade. No último dia 17 de julho, um domingo à noite, pelas características da atividade em tela e necessidade de serviço (poucos empregados teriam folgas nesse dia e horário), deixam o convívio familiar e procedem a ação fiscal determinada. Quase ao final, após 14 empresas serem inspecionadas, a maioria com trabalhadores sem o devido registro na CTPS, verificam a condição dos empregados encarregados da limpeza do espaço. Ao procurar o proprietário do lugar, esse alega desconhecer quem eram esses empregados, quem os gerencia e os remunera. Um estranho caso de atividade de limpeza espontânea do espaço. Inconformado com o andamento da ação, o indivíduo inicia uma live, repleta de ofensas, calúnias e difamações, posteriormente publicada na sua rede no Instagram. Em sua interminável duração, literalmente persegue e ameaça as servidoras, que simplesmente tentam dar continuidade à tarefa, inclusive junto a outros empregadores. Também divulga seus rostos e informações na rede, uma forma de potencializar a violência e o assédio. Uma lancheria ainda não havia sido verificada, uma das servidoras se dirige ao local. O indivíduo as segue e, mesmo do lado externo, continua a gravação da live e grita. É reiteradamente informado acerca dos objetivos da ação pelas servidoras, buscando alguma condição de manter seu trabalho, num ambiente hostil, mas persevera no assédio. A polícia local é chamada, mas não comparece até a saída das auditoras. Durante o mesmo dia, o mesmo indivíduo publica vídeos curtos em seu Instagram, com novos ataques pessoais, exposição pública de dados e insinuações. Na terça, se apropria de imagens (fotografias) de rede social de uma das servidoras e prossegue em seu ataque. Divulga seus rostos, informações e dados pessoais, inclusive a placa do automóvel particular de uma das AFT. Não exercita o direito de questionar uma fiscalização de Estado nos espaços legalmente destinados, o indivíduo pessoaliza o ato, debocha, humilha, assedia e tortura mulheres, servidoras públicas. Como esperado, as suas postagens incentivam outros ataques de ódio, ignorância e insanidade.
Qualquer descrição é insuficiente para demonstrar o cenário de horror e a violência a que estão sendo submetidas duas mulheres, em uma cidade média como São Luís, duas servidoras públicas concursadas, duas cidadãs com coragem e sentido do dever que o autor dos ataques desconhece. E que apenas cumpriam uma tarefa demandada, inserida em projeto institucional. As óbvias tipificações criminais aplicáveis, inclusas a difamação, calúnia, exposição pública da imagem e outras, inseridas em um contexto repleto de ódio e insanidade, foram comprovadas pelo próprio autor, em suas redes sociais.
Quais as relações em comum que podem ser estabelecidas entre um caso de humilhação e violência contra mulheres e o trágico episódio envolvendo Bruno Pereira, servidor do Ibama, e o jornalista britânico Dom Phillips? Guardadas as devidas proporções, ambos revelam as entranhas de uma violência estrutural incentivada, tornada ainda mais aguda por quem tem o dever de zelar pela civilidade e observância das leis. Ambos nos alertam que o Estado, e seus agentes, é também um inimigo a ser abatido, se não estiver privatizado, submetido aos interesses dos atuais donos do poder. Ambos são evidências de uma caminhada rumo à distopia: uma sociedade infernal, um faroeste caboclo de duzentos milhões de habitantes, cujas leis são ignoradas pelos bandoleiros e pervertidas pelo xerife, portando um fuzil de assalto.
O anátema da civilização.
A Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência deve rever a sua política de abandono dos protocolos de segurança de seus servidores. Os órgãos de representação da categoria e todas as entidades que convergem em torno do direito a um trabalho digno devem agir, não estamos diante de um fato pontual, mas de uma escalada rumo à barbárie.
Basta!
Instituto Trabalho Digno
Coletivo Trabalho por Elas
Movimento Anafitra
Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho da Bahia
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