Excelentíssimas Ministras do Supremo Tribunal Federal
Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal
Considerando o grave fato ocorrido nos últimos dias, quando a senhora Sônia Maria de Jesus, mulher negra, com deficiência (surda), resgatada de condição análoga à de escravizado, acolhida pelo sistema de proteção social e em processo de ressocialização (de modo a fornecer-lhe instrumentos e capacidades básicas para comunicação e integração à sociedade), foi, por decisão do eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça no bojo do Processo nº PBAC 65/DF (2023/0139906-3), abruptamente retirada da instituição de acolhimento, sem que ao menos tivesse a possibilidade de rever sua família, e devolvida a seus algozes, os escravocratas Ana Cristina Gayotto de Borba e Jorge Luiz de Borba, que por quase 40 anos mantiveram Sônia privada dos mais elementares direitos laborais e sociais, explorando-a desde a infância, impondo-lhe o analfabetismo, a falta de acesso a uma educação adequada à sua condição de pessoa com deficiência e a incapacidade de exercício pleno das faculdades e direitos sociais, o Instituto Trabalho Digno - ITD expõe o que segue:
No Brasil, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, de 1995 a 2023, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados de situação análoga à de escravizados. Uma característica comum às vítimas desse crime é a vulnerabilidade de diversas naturezas, sendo a principal a socioeconômica. Essas pessoas têm pouca ou nula inserção em políticas públicas e estão submetidas a outras formas de opressão, como a racial e de gênero, por exemplo. No caso do trabalho escravo doméstico, situações que perduram por décadas, a vivência dessas condições aumenta a vulnerabilidade e facilita o processo de exploração das vítimas.
O combate ao trabalho escravo abrange várias iniciativas que enfrentem suas múltiplas causas e as consequências: prevenção do aliciamento e do retorno a essa exploração; conscientização e informação sobre o trabalho decente; educação e preparação para o mundo do trabalho; fiscalização das propriedades; responsabilização dos autores; atendimento às pessoas resgatadas, promovendo acesso à direitos e enfrentando os efeitos negativos dos direitos violados; estruturação de coleta de dados; existência de legislação específica; dentre outras ações que contribuam para a erradicação. Para combater o trabalho escravo é necessária a institucionalização de uma rede intersetorial composta por políticas públicas, sistema de justiça, sistema de defesa de direitos, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, instituições de ensino e pesquisa, dentre outros atores a somar, que devem trabalhar de forma articulada e integrada, desenvolvendo nos territórios, grupos de trabalho, processos de trabalho, instrumentos, fluxos, protocolos.
A política nacional brasileira de combate ao trabalho escravo, experiência internacionalmente reconhecida como uma das melhores iniciativas de combate ao trabalho escravo contemporâneo no mundo, se alicerça no Fluxo Nacional de Atendimento às vítimas de trabalho escravo (Portaria do então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos n.º 3.484 de 6 de outubro de 2021) e representa um marco para a política pública brasileira, estabelecendo um norte para a atuação dos entes federativos e atores sociais envolvidos. O Fluxo define os papéis e responsabilidades de cada um dos atores e padroniza o atendimento às vítimas resgatadas, assegurando o apoio especializado e humanizado, garantindo o encaminhamento das vítimas às políticas e serviços públicos pertinentes a cada caso.
Em obediência ao citado instrumento, foi iniciada ação fiscal em 01 de junho de 2023, sob a coordenação da Auditoria Fiscal do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego. Em 06 de junho de 2023, com a participação de Delegado e Agentes da Polícia Federal, Polícia Científica – intérprete de libras, e acompanhada por membros do Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, houve diligências na residência dos senhores Ana Cristina Gayotto de Borba e Jorge Luiz de Borba com vistas a verificar possível caso de trabalho análogo ao de escravizados, no âmbito doméstico.
Verificou-se a condição análoga à de escravizado e Sônia foi imediatamente resgatada e acolhida pelos órgãos e instituições competentes, garantindo-lhe apoio social e psicológico, além do desenvolvimento e participação em atividades de inclusão e educação, com a finalidade de garantir instrumentos necessários para uma vida autônoma e integrada à sociedade, a exemplo das capacidades para comunicação.
A Sra. Sônia Maria de Jesus sofre a ação de várias situações que a vulnerabilizam. Sônia é mulher, negra, analfabeta, com deficiência (surda), migrante (foi trazida de São Paulo), vítima de violência doméstica na infância pelo pai, analfabeta em português e libras e, segundo entendimento das instituições responsáveis pelo seu resgate da condição análoga à de escravizado, e não só da Auditoria Fiscal do Trabalho, vítima do trabalho escravo e, também, do trabalho infantil, pois foi para a casa de seus exploradores ainda criança.
Sônia, segundo argumentos dos acusados pelo trabalho análogo ao de escravo, é "como se fosse da família". Que filha é essa!? Qual outra filha do casal foi privada da educação assegurada pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente? Que filha é essa que é privada de convivência comunitária!? Que filha é essa que jamais soube que tem família biológica e que esta só a entregou com a perspectiva de vê-la novamente, após cessada a violência do pai? Que filha é essa invisível ao Estado brasileiro até após os 40 anos, pois não possuía documentos? Que filha é essa que é chamada de funcionária? Que filha é essa?
O Brasil não pode naturalizar o trabalho análogo ao de escravizado. Sônia não é uma não pessoa. Sônia é uma trabalhadora e uma cidadã portadora de direitos. Sônia não deve, como quer seus algozes, em mera estratégia de defesa, ser considerada sua “filha”. Sônia é vítima e digna da devida reparação social e econômica por parte de quem a escravizou.
A decisão exarada pelo Ministro Mauro Campbell do STJ no processo nº PBAC 65/DF (2023/0139906-3), mantida pela negativa ao habeas corpus no processo nº HC 232.303 MC/DF exarada pelo Ministro André Mendonça, é uma medida que protege os exploradores e escravocratas e tem o sentido de transformar o poder judiciário na famigerada figura do “Capitão do Mato”, aquela importante e temida figura da escravidão clássica que tinha por função capturar e devolver aos escravocratas os escravos fugidos.
Mais grave! Sônia não é uma escrava fugida. Sônia é uma trabalhadora escravizada resgatada pelo poder público e em processo de ressocialização e resgate de seus direitos mais elementares. A decisão do STJ, mantida pela decisão do Ministro André Mendonça, faz cessar a recuperação dos direitos da vítima e se apresenta como grave decisão a fragilizar a reconhecida política nacional de combate ao trabalho análogo ao de escravizado em nosso país.
É urgente que a Suprema Corte reveja os atos praticados no âmbito do STJ e do próprio STF, garantindo que Sônia continue sua jornada para recuperar a liberdade e dignidade roubadas.
Instituto Trabalho Digno
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