EDITORIAL DO ITD
No conto O Alienista, de Machado de Assis, emerge a dualidade sorrateira da personagem Crispim, aquele que se dizia um pio crédulo da Ciência, desde que lhe fosse vantajosa. Traçar paralelos são portais para a reflexão e nos permitem observar as novas iniciativas e corrosivas práticas do Governo Federal no campo do trabalho, como a oficialmente denominada “modernização das Normas Regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho”, as NR. Quase ao mesmo tempo, relatórios técnicos da Inspeção do Trabalho acerca das ações de combate ao trabalho análogo à escravidão, ferida fétida que nunca cessa de sangrar, são convenientemente submersos nas gavetas dos gabinetes acarpetados de Brasília.
Como já demonstrou o Instituto Trabalho Digno em seguidas notas técnicas, o atual processo de revisão das NR é um jogo de cartas marcadas, contido pelas margens impostas por premissas estigmatizantes. A única atualização alcançada é aquela submetida aos interesses do capital, a genuflexão confessada por autoridades e estruturas de Governo, vide notas da Secretaria de Assuntos Econômicos do Ministério da Economia e manifestações expressas na mídia. A primazia do econômico já era erguida como argumento para justificar e manter a escravidão legal do povo negro, patrioticamente brandida dentro das paredes alvas deste Brasil da casa grande e senzala. Privar a liberdade, impor uma sobrevida miserável, a dor ou morte caridosa no pelourinho era a forma civilizada das nossas elites lidarem com o problema e imporem as soluções que lhes interessavam. A História se repete, com mudanças no cenário, na narrativa e nos refrões (“mais empregos”), mas que se conjugam na similaridade do seu conteúdo antissocial.
Há muita simbologia na presença do Sr. Presidente da República e de seu núcleo palaciano em ato de publicação de algumas regulamentações de saúde e segurança setoriais. Simbologia, por sinal, acompanhada por chacotas toscas acerca da estrutura de Estado que combate não apenas as inconformidades trabalhistas, mas também a barbárie. A inédita e recorrente presença do mandatário e consortes indica a existência de um projeto político e respectiva prestação de contas, ofertada aos setores rinocéfalos da produção rural e industrial brasileira, uma de suas bases de apoio.
Mesmo neste cenário de horror, o Estado remanescente tenta cumprir a sua função constitucional. Foi recentemente elaborado detalhado documento, titulado “Atuação da Inspeção do Trabalho no Brasil para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo”, um balanço das ações de fiscalização pelo Estado, referentes ao ano base de 2020, elaborado pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do MTP, em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Uma referência para o estudo e avaliação das políticas estatais que, por sua natureza, devem ser necessariamente de domínio público. A prestação de contas não a setores oligárquicos, mas à sociedade, a você. Coerentemente com tudo que temos visto, o documento foi retirado das páginas institucionais da Inspeção do Trabalho.
Uma pena, a sua análise demonstra a incrível resiliência de uma iniquidade absurda, que nos envergonha como nação e insiste em se mostrar forte e presente, mesmo em pleno século XXI. Não apenas em fronteiras e sertões longínquos, mas amalgamada nos cenários urbanos e na exploração intensa do precariado.
Crispim Soares, o boticário da cidade, atrás do balcão encardido da memória nacional, contempla os fatos com um sorriso.
Instituto Trabalho Digno
Clique acima para conhecer o relatório onde a Inspeção do Trabalho brasileira destaca sua atuação no enfrentamento ao trabalho análogo ao de escravo ao longo de 2020.
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